Condutores de alta tensão: a rotina estressante dos motoristas de ônibus do Rio

Temidos como os maiores predadores do trânsito carioca, eles também são vítimas do caos no sistema de transportes

POR PEDRO MOTTA GUEIROS

19/07/2015 - o Globo


Cenas de motoristas de onibus no Centro da cidade - Daniel Marenco / Daniel Marenco


RIO — Quando a fluidez do trânsito permite, motoristas das linhas de ônibus do Rio fazem a carroceria chacoalhar nas curvas e aceleram além do limite entre o arrojo e a imprudência. Na falta de um autódromo na cidade, a corrida é nas ruas. Apesar da disputa para ver quem carrega mais reclamações pelo caminho, todos estão juntos no mesmo sofrimento, que submete a profissão às cobranças de patrões e usuários e às doenças de corpo e mente. A maioria dos motoristas a serviço das 43 empresas integrantes do sindicato Rio Ônibus, que reúne os quatro consórcios responsáveis por todo o sistema no município, não tem suporte de cobrador, nem plano de saúde.

— O pobre profissional do volante é um sujeito que dá mais do que é capaz, trabalha quase sob regime de escravidão. Privado do contato com a família, do sono e do lazer, chega a comer e dormir dentro do ônibus — diz Dirceu Rodrigues Alves, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), que trabalha em Brasília pela revisão da legislação do setor. — Por terem insalubridade, médicos, bancários e operadores de telemarketing cumprem jornada de seis horas. Por que os motoristas, que enfrentam insalubridade, periculosidade e vivem uma rotina penosa, podem trabalhar por 12 ou 13 horas?

DO GRAJAÚ À GÁVEA EM TRÊS HORAS



No Rio, o contrato coletivo prevê carga de 42 horas semanais, com duas horas extras por dia, sem contar os excessos cometidos por patrões e empregados. Com os 9% de reajuste, obtidos pelo último acordo, o piso salarial de motoristas e cobradores cariocas passou para R$ 2.134 e R$ 1.177, respectivamente. De acordo com as regras de trânsito, o menor deve ser protegido pelo maior. Na lei do mercado, ocorre o contrário.

— Muitos dos supervisores, que já foram motoristas, precisam nos punir para reduzir a folha. Toda a cobrança é em cima do motorista — afirma o motorista da linha 893 (Campo Grande-Palmares) José Ricardo Ferreira, que chegou ao fim da linha. — Não aguento mais.

O jogo é bruto. Duas partidas de futebol, mais os acréscimos, 188 minutos. Esse foi o tempo que Gediel Jerônimo e a cobradora Ioneida Souza, da linha 435, levaram para cumprir os 24km entre o Grajaú e a Gávea na manhã do dia 23 de junho, a uma velocidade média de 7,6km/h, por conta de um acidente que triplicou o tempo normal da viagem. Em qualquer circunstância, a dupla tem a sensação de correr contra o tempo.

— Minha profissão vai acabar — disse Ioneida, sem mostrar o mesmo empenho para escapar do fim como fez quando se atirou no chão do ônibus que invadiu um prédio em Ipanema. — Já avisaram que vão demitir. Estou me preparando.

De acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, houve 647 admissões contra 941 demissões de "ajudantes de motoristas" no município do Rio no último mês de maio. O Rio Ônibus alega que os cobradores devem ser absorvidos em outras funções do sistema. Entre os motoristas, maio registrou 1.113 entradas e 890 saídas do emprego. A adoção dos corredores exclusivos e o pagamento digital são viagem sem volta. Não é só pela dupla função que o motorista terá novo papel.

— Nosso trabalho tem foco no motorista como um mediador de conflitos — diz Ana Rosa Bonilauri, diretora da Universidade Corporativa do Transporte (UCT), um centro de capacitação que é bancado pelas empresas e já atendeu 60 mil rodoviários desde 2008. — O motorista tem orgulho da profissão.

A afirmação se apoia nos números da UCT sobre a média de permanência do motorista na função, que subiu de 6,6 anos em 2010 para 9,6 anos em 2014. Poder concedente do sistema, que emprega cerca de 40 mil pessoas, a prefeitura também defende a evolução dos serviços, destacando que o número de reclamações de usuários, feitas pelo teleatendimento, caiu em 30,5% de 2013 para 2014. Os programas de treinamento oferecidos pelas instituições do setor contam com simulador semelhante aos da aviação.

Fora do conforto das salas de aula, a sensação de desamparo prevalece, mesmo que os rodoviários tenham acumulado 59,5% de aumento, contra uma inflação de 37,4%, nos últimos cinco anos. O desânimo é sintoma comum. Submetidos à poluição, ao calor e à trepidação do motor, os rodoviários são vítimas de transtornos psiquiátricos, hipertensão e de problemas de coluna, segundo Dirceu. Embora a legislação determine que a exposição máxima ao barulho seja de 85 decibéis, em média, ao longo de oito horas, estudos da Abramet mostram que o motorista tem suportado volumes de 87.

— E muitas vezes trabalham por até 16 horas para fazer um dinheiro a mais e para que a empresa economize por não ter que contratar — diz Dirceu, acrescentando que os motoristas resistem a buscar reabilitação. — Se forem afastados, só têm a cair de faixa salarial, porque são habilitados apenas para dirigir.

LEÃO NO TRÂNSITO SELVAGEM

No passado, o tratamento já era leonino. Por conta do uniforme cáqui e do desafio de matar um leão por dia, o motorista carioca era conhecido pelo nome do animal. Na lei da selva urbana, em que o interesse particular ocupa o espaço público, a confusão é tamanha que o mais temido predador pode ser a maior vítima.

— Se o trânsito do Rio piorou para todos, imagina para o motorista — diz a engenheira de transportes Eva Vider, professora da Escola Politécnica da UFRJ. — Quando a cidade não estava em obras, os ônibus tinham velocidade média de 17 a 20km/h, com as paradas. Hoje a média está entre 8 e 10km, em vias de tráfego misto, sem contar os corredores exclusivos.

Entre queixas procedentes ou não, está a chamada "dobrada". Cumpridas as sete horas, os motoristas alegam que precisam iniciar nova jornada, para reduzir horas extras e tributação.

— A segunda parte é paga na hora, em dinheiro. Quando eu dirigia, também aceitava, mas temos que brigar pela incorporação ao salário — disse o presidente do Sindicato dos Motoristas e Cobradores do Rio, José Sacramento.

COMIDA DEFUMADA NO DIESEL

Por meio de sua assessoria, o Rio Ônibus diz que "essa suposta prática é passível de fiscalização pela Justiça do Trabalho". Ao contrário do processo legal, o rito das ruas é sumário. Toda a insatisfação atende pela mesma interjeição que precede o tratamento impessoal e intransferível: "Ô, motorista!". Segundo o professor de português Sérgio Nogueira, palavras-ônibus, como "definir" e "colocar", carregam vários significados e tomam o lugar de outras mais precisas. No caso, ou no caos, do trânsito, uma delas é "motorista".

— Ninguém quer saber se a gente tem nome ou família. Tudo é o motorista — diz Gediel.

O bom humor e o improviso servem para levantar o ânimo. Como os intervalos entre as viagens, em geral, não levam mais que cinco minutos, o motor serve para esquentar as marmitas. Ao levantar o capô, surge um compartimento conhecido como micro-ondas ou defumador, por aquecer a comida com "notas" de óleo diesel.

O calor nem sempre é bem-vindo. Para refrigerar a perna, colada ao motor, trabalha-se com a calça dobrada na altura do joelho. Outro comportamento padrão são os revestimentos do banco e do vidro que separa a cabine do resto do ônibus. Além de garantir certa privacidade, a cortina, estampada com o escudo do clube ou com a imagem do santo de devoção, traz referências familiares, embora a responsabilidade seja cada vez mais solitária.

Num outro carro da linha 435 (Grajaú-Gávea), a cabine ainda dividida pela rivalidade Fla-Flu lembra que um não pode viver sem o outro. Entre a tricolor e o flamenguista, a rima com o cobrador e o motorista remete à versão da marchinha de Emilinha Borba. Mesmo que a canoa não vire e que o trânsito permita, é difícil saber quando o motorista vai chegar lá, ao lugar em que o respeito anda na frente da hostilidade.

VERGONHAS EXPOSTAS A CÉU ABERTO

Sob a chuva fina da madrugada, a luz branca, vinda da janela do apartamento térreo de um condomínio em Campo Grande, indica que a casa ainda nem foi dormir quando João Carlos França já acordou para mais um dia de trabalho. São duas da manhã de sexta-feira e o motorista, saído do banho, anda de samba-canção pela casa, enquanto a mulher e uma das filhas veem TV. Após lustrar os sapatos e limpar os óculos, França, como é conhecido na pista, veste o fardamento com o qual vai conduzir a linha de ônibus mais longa do município, a 2335. São 75 quilômetros entre Santa Cruz e Castelo, via Barra, cumpridos quatro vezes, das quatro da manhã até a hora em que São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas, e o trânsito permitirem.

Aos 53 anos, sendo 18 ao volante, França convive com os problemas comuns à categoria, embora seu ônibus seja executivo, com tarifa de R$ 14,90. A segunda viagem do dia, que pega o rush matinal no sentido Castelo, chega a levar sete horas. Com as mãos tremendo logo que acorda, França mostra que nem tudo é passageiro na rotina de quem vive sob estresse permanente.

— Isso me acontece todo dia — diz ele, que é também eletricista e, portanto, duplamente sabedor da diferença de resistência entre os condutores — Não sei até onde eu suporto.

EXAME TOXICOLÓGICO A PARTIR DE JANEIRO



Entre as 45.594 indenizações por afastamento que o INSS concedeu aos rodoviários no ano passado, os empregados das linhas urbanas representam a maior parte, com 20.203 pensões, contra 16.528 do transporte de carga.

— As estatísticas são difusas. Só teriam valor se houvesse um banco de dados unificado, com todas as alterações do dia a dia desses profissionais — afirma Dirceu Rodrigues Alves, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego.

Na prática, os números têm pouco valor. Comparando os contracheques de maio nos últimos três anos, França recebeu R$ 1.212 em 2013; R$ 1.333 em 2014 e R$ 707 este ano, já deduzidos os 40% do salário pagos na primeira quinzena do mês. Antes de sair, ao apertar a gravata em frente ao espelho, o motorista se depara com o desafio de se apresentar impecavelmente. Qualquer amarrotado na lataria pode implicar descontos e expor a risco a integridade física do coletivo. Sofrer ameaças de motoristas armados, como aconteceu naquele dia, faz parte da rotina do rodoviário, que também se sente acuado dentro da garagem:

— Sou cobrado se pegar menos de 80 passageiros num dia, mas ganho um real por passageiro depois de 120. É o que o pessoal chama de bife.

No fim do expediente das sextas-feiras, o bônus é cerveja. Além do bafômetro, em breve a categoria terá que passar por exames toxicológicos com abrangência de 90 dias. A medida, condição para a renovação da carteira de habilitação, está prevista para começar a vigorar em janeiro.

— É um exame caro, de cerca de R$ 300, que será cobrado do motorista — explica Dirceu, empenhado em derrubar a exigência, que consta da chamada Lei do Descanso, aprovada em janeiro. — Não me interessa o que o motorista usou há três meses e sim se ele está sob o efeito de drogas no exercício do trabalho. Para isso, basta um teste imediato, como o do bafômetro ou o de saliva.

Para França, a abstinência é alimentar. Só come quando chega em casa, por volta das 15h. Um copo de café e um cigarro servem para dar a partida, ainda a pé, no trecho que percorre às escuras até pegar um ônibus, por volta das 2h40m, com destino à garagem da empresa Pégaso, em Cosmos. De lá, dirige por 10km, sozinho, até chegar ao ponto de partida, em Santa Cruz. Ao passar pela Favela de Antares, para o ônibus para que um cachorro atravesse a pista.

França conduz um coletivo novo, um privilégio entre os colegas da empresa, que teve 102 veículos interditados, entre maio e junho, por ações do Procon. No rádio, a música "Patience", do Guns N' Roses, dá o tom do que está por vir, tanto pelo título quanto pelo nome da banda. Com uma arma potencial nas mãos, tão letal quanto aquelas que já viu apontadas em sua direção, França precisa ter paciência para ver o entusiasmo florescer novamente.

— Já tive prazer em dirigir; hoje, faço por necessidade, não por amor — disse, sem se dar conta de que o sufoco de todo dia reforça os laços com pai, que foi motorista por 45 anos. — Está no sangue. Sou dedicado ao máximo.

Há seis anos sem cobrador, França abre o caixa com R$ 72 reais de suas economias para facilitar o troco. Embora o aviso colado à cabine determine capacidade de 48 passageiros sentados e nenhum em pé, o ônibus já está cheio de irregularidades após 40 minutos de viagem. Entre dezenas de passageiros de pé, as mulheres já se acostumaram com a igualdade no desconforto. França conserva o cavalheirismo ao descer para acomodar no bagageiro as caixas de camarão que uma moradora de Guaratiba vende na Zona Sul. Em Copacabana, libera a bagagem, pega o Aterro e chega ao Castelo ainda às escuras.

Depois de descer por cinco minutos para usar o banheiro do terminal — outro privilégio em relação aos colegas, que muitas vezes exibem as vergonhas da profissão a céu aberto —, França reclama, dizendo que o despachante deixou o colega da linha Castelo-Recreio sair na sua frente. Encobertos pela penumbra, embora fossem capazes de repetir a cena em qualquer condição de temperatura e pressão, os dois carros da mesma empresa emparelham na altura da Glória e alternam suas posições, até se espalharem junto com a luminosidade de mais uma manhã.

De volta a Copacabana, a conversa e o trânsito fluem sem interrupções. A amizade com a chefe de enfermagem de um hospital rende a França companhia diária e ajuda para toda a família. Apenas os rodoviários associados ao Sest-Senat (Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte) têm atendimento médico e odontológico, além de nutricional, fisioterápico e psicológico, na unidade de Deodoro, que presta cerca de 41 mil consultas anuais, segundo o Rio Ônibus. Não é o caso de França, que paga R$ 73 mensais, a mesma quantia desembolsada pela empresa, por um plano individual, que só contempla os funcionários mais antigos. O tempo de serviço ajuda a encontrar atalhos. Ao cruzar a ruela que leva à praia, em Guaratiba, França mostra o caminho que faz nos fins de semana para comprar o mesmo camarão que ajuda a transportar. Nos dias de trabalho, é preciso deixar as barbas de molho. Após mais um café e um cigarro em Santa Cruz, vem o momento de embrulhar o estômago.

FRIEZA EM SITUAÇÕES LIMITE

No emaranhando de pistas e veículos que se cruzam na Avenida das Américas, a frente do ônibus encosta na traseira de um carro, de onde um sujeito desce para tirar satisfações. Para quem não tinha a visão completa da cena, o relato de França, de que o outro motorista desembarcou com uma pistola na mão, antes de escondê-la sob a camisa, é corroborado pelo que se ouve da discussão travada pela janela.

— Para que isso? — reagiu o condutor do 2335. — Não sou bandido. Segue o seu caminho.

Antes de fazê-lo, o motorista atravessa seu carro na frente do ônibus, se certifica de que não houve avaria e ainda assim anota a placa.

— Se for policial, vai me encher de multa.

Antes de buscar um advogado, França já tem a solidariedade dos passageiros.

— Fortes emoções às 10 da manhã? — indaga uma senhora, ao desembarcar na Barra. — Se esse homem puxou uma arma agora, imagina o que estará fazendo às 10 da noite.

A essa hora, França já estará protegido pelos lençóis e pela sensação de missão cumprida.

Por meio da assessoria do Rio Ônibus, a Pégaso diz que analisa as infrações de trânsito cometidas, avalia a possibilidade de recurso ou não e só efetua algum tipo de cobrança ao motorista em casos flagrantes de excesso de velocidade e avanço de sinal. Com o devido desconto, o saldo é desfavorável ao motorista que ousa subverter a ordem. Quem janta na hora do almoço e dorme com a família e o sol ainda de pé já se acostumou a andar na contramão.

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