Rodovias Estaduais

Caminhos históricos do Vale: a Estrada do Comércio

24/01/2022 - Vale do Café

Por Sebastião Deister

No ano do bicentenário da independência do Brasil, a Revista Vale do Café traz uma série de reportagens sobre as estradas que cortaram a região no final do século XVIII e parte do século XIX, que tiveram grande importância econômica e até política no contexto da independência brasileira e da consolidação do segundo reinado. A primeira estrada da série é a Estrada do Comércio, que tem pouco mais de 200 anos.

A descoberta do ouro em Minas Gerais levou a Coroa Portuguesa a ordenar um maior controle sobre os descobertos. Além da restauração da Capitania de São Paulo e criação da Capitania de Minas Gerais, Portugal decidiu pelo Rio de Janeiro como o porto das Minas.Entre Minas e a cidade do Rio de Janeiro já havia um caminho que terminava em Paraty e de lá por barcos se chegava ao Rio.

Um novo caminho por terra foi proposto e realizado por Garcia Paes atravessando o vale a partir do Porto de N. Sra do Pilar do Iguassu. Em 1723, é feito um novo trajeto diminuindo o tempo de viagem em 5 dias. Era o Caminho do Proença que saia do porto de Inhomirim (Magé).

Somente em 1788 é que se vai ultimar um caminho por terra ligando São Paulo ao Rio – O caminho Novo da Piedade. Esta estrada terminava na Real Fazenda de Santa Cruz.

Foi na região aberta pela Estrada em São Paulo e a Província Fluminense que se implantou a cultura cafeeira no vale. Os primeiros plantadores eram senhores de engenho, tropeiros e boiadeiros. Com o capital advindo da economia mercantil de subsistência eles investiram em café pois devido a revolta de escravos no Haiti e a guerra entre França e Inglaterra tirou do mercado o maior produtor – a França.

Com o crescimento das plantações principalmente depois de 1822 quando o café passa o açúcar em valor novas áreas se abrem no vale e novas rotas teriam de ser traçadas

Esse aumento da produção cafeeira no Vale do Paraíba Fluminense tinha muitas barreiras que se impunham entre o lugar onde era produzido e onde era vendido. A distância, matas ainda não desbravadas e uma topografia acidentada eram alguns dos obstáculos a serem vencidos.

Uma das principais rotas de escoamento do café e outros itens importantes do comércio entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro, cortando o coração do Vale do Café, a Estrada Real do Comércio foi construída por iniciativa da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos entre 1813 e 1817 num caminho que entrecortava uma mata selvagem com trechos muito íngremes, partindo de Nossa Senhora da Piedade de Iguassú (atual município de Nova Iguaçú), subia a serra do Tinguá (hoje a Reserva Biológica Federal do Tinguá) e de Sant´Ana passando pelos arraiais de Vera Cruz, Arcádia e Estiva (Miguel Pereira), Massambará (em Vassouras), até atingir as margens do Rio Paraíba do Sul. Daí dividia-se: um braço rumava rio abaixo, entrava pela Fazenda de Ubá, até encontrar o Caminho Novo e o da Estrela; o outro cruzava o rio, cuja travessia era feita por meio de balsa até Comércio e de lá seguia também para Minas Gerais.

A Real Junta de Comércio foi criada por iniciativa do Príncipe Regente Dom João VI em 23 de agosto de 1808 resultado de uma “mui particular consideração [daqueles] […] que produzem a bem do interesse do Estado, visando à multiplicação da riqueza e aumento [da] população; merecendo por isso […] os mais vigilantes cuidados”. Foi um empreendimento fundamental para a transformação do Rio de Janeiro em centro político e econômico do Império Português durante o reinado de Dom João VI. Um membro da Real Junta teve grande importância na construção da estrada, João Rodrigo Pereira de Almeida, que se tornaria Barão de Ubá e onde terminava a estrada antes de atravessar o Rio Paraíba do Sul e seguir para Minas Gerais.

Algumas melhorias foram feitas na estrada posteriormente. Um conjunto de intervenções específicas, realizadas pelo coronel do Imperial Corpo de Engenheiros Conrado Jacob de Niemeyer em 1842 praticamente refez a primeira seção do caminho. Nesse período foi colocado calçamento de pedra, alguns trechos consertados e foram construídos pontilhões e muros de arrimo para conter as encostas. O nome da localidade Conrado, pertencente ao município de Miguel Pereira, se deve ao coronel Niemeyer, que se mudou com a família na época para a Serra do Tinguá.

Suporte ao processo de desenvolvimento da lavoura cafeeira

O trajeto das tropas que transportavam os produtos do comércio era percorrido pelos chamados “muares”. Era no lombo de burros e mulas serra acima ou abaixo que trafegavam os itens comerciais que dariam suporte à economia cafeeira do segundo reinado. As mulas resistiam à topografia acidentada do percurso, cheio de altos e baixos e venciam também as longas distâncias percorridas.

Muitos historiadores afirmam que a via foi um ponto chave para que o negócio do café fosse bem sucedido. Por ali passou uma parte significativa da mão de obra utilizada na plantation cafeeira, outros itens… e era também por onde passava uma parte considerável do café que o Brasil vendia ao mundo.  Um grande fluxo comercial passava pela Estrada do Comércio. Segundo o historiador Magno Fonseca Borges, “as Estradas do Comércio e da Polícia recebiam o maior fluxo de animais que formavam as tropas dos fazendeiros de Vassouras e Valença. Enquanto a segunda, seguindo uma direção mais ocidental de Vassouras para atingir a vila de Valença, atendia as lavouras das Freguesias de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras, Santa Cruz dos Mendes e Sacra Família do Tinguá, a primeira, principiada em Iguaçu, subia as Serras do Tinguá e Santa Ana. Atravessava a Freguesia de Pati do Alferes e seguia em direção a Massambará. De lá, chegava à travessia do Paraíba em Ubá, de onde seguia em direção a Valença, Rio das Flores e Rio Preto. Esta via atendia, principalmente as lavouras das Freguesias de Nossa Senhora da Conceição do Pati do Alferes, São Sebastião dos Ferreiros e parte de Sacra Família do Tinguá”.

Desuso e extinção da estrada

A decadência da Estrada do Comércio começou quando se inaugurou a Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Estrada de Ferro Central do Brasil), em 29 de março de 1858, ligando a Corte do Rio de Janeiro com Queimados e, anos depois, com Minas Gerais. Depois houve a abertura da Estrada de Rodeio (atual Engenheiro Paulo de Frontin) a Paty do Alferes que proporcionou um caminho alternativo até a região cafeeira do vale do rio Paraíba do Sul.

Um projeto para preservar a memória da criação da Estrada do Comércio

Um projeto desenvolvido por pesquisadores em parceria com a Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu e a Secretaria de Cultura de Vassouras vai realizar algumas ações em torno da Estrada do Comércio. Sob a coordenação dos pesquisadores Eduardo Cavalcanti Schnoor, Mariza de Carvalho Soares, Ana Pessoa e o secretário de cultura de Nova Iguaçu, Marcos Monteiro, o projeto comemorativo dos mais de 200 anos de inauguração da estrada vai atuar na reconstrução de sua história por meio de um conjunto de investigações que incluem pesquisa arqueológica e histórica, recursos à tecnologia digital e ações educativas. É uma iniciativa implementada em parceria com as secretarias de Cultura dos municípios de Nova Iguaçu e Vassouras que participam do projeto na condição de apoiadoras e beneficiárias. O projeto é grandioso. Prevê a realização de uma exposição multimídia com seu catálogo impresso e ebook; um seminário realizado em parceria com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; uma coleção de quatro pequenas publicações educativas; duas reconstituições em 3D (a casa sede da Fazenda São Bernardino e a Vila de Iguassú); uma prospecção arqueológica na área da Vila de Iguassú; e um estudo socioambiental do entorno da Estrada do Commercio.

BOX: Uma vila no meio do caminho

A Estrada do Comércio, serviu de pretexto para uma das mais ousadas obras do barão de Paty do Alferes (Francisco Peixoto de Lacerda Werneck) na metade do século XIX. Às margens daquele pioneiro caminho, ele tentou concretizar seu sonho de construir uma cidade que alicerçasse um trecho de apoio às caravanas que circulavam diariamente entre os vales dos rios Paraíba e Santana e o Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que pretendia homenagear a princesa Isabel, batizando a vila com o nome de Isabelópolis em consonância com Petrópolis (a cidade de D. Pedro II).

Contudo, Isabelópolis não passou de uma caríssima e frustrada utopia, pois nela Francisco gastou cerca de 60 contos de réis, uma fortuna expressiva para a época. Por outro lado, as obras minaram parte de sua resistência orgânica, testaram ao extremo sua paciência e levaram à morte vários de seus preciosos escravos, alguns abatidos pela dureza do trabalho e outros tantos dizimados por doenças tropicais galopantes, como o cólera, a malária e a febre amarela.

Aos poucos, a freguesia foi abrigando uma expressiva população, tanto que, em vista de seu crescimento, o Governo da Província achou por bem nela instalar um cartório para registrar nascimentos, casamentos e óbitos e um posto de atendimento policial. Mas não obstante os ingentes e continuados esforços do barão, sua Santana das Palmeiras teve uma vida efêmera e até mesmo melancólica. Em 1858, uma devastadora epidemia de malária varreu a baixada de Iguassú, provocando a fuga de quase todos os seus moradores para freguesias mais distantes e, por conseguinte, mais seguras. Nem bem os remanescentes da vila se haviam recuperado desta tragédia e o cólera se abateu sobre a região, ceifando mais vidas e pondo em polvorosa as autoridades da Província.

É certo que, entre 1880 e 1898, ainda sobreviviam por ali algumas famílias teimosas e destemidas, mas a triunfal passagem da ferrovia por Belém (hoje Japeri) unindo em definitivo o Rio de Janeiro às cidades da Serra – transportando com rapidez, segurança e conforto os produtos que normalmente transitavam em lombo de mulas pela tortuosa e perigosa Estrada do Comércio – solapou de vez aquele entreposto comercial, e assim a vila, a igreja, a delegacia, a escola, as casas e o cemitério foram deixados em meio à mata, lá repousando hoje tão somente as ruínas de um grande sonho.

Com a colaboração de Eduardo Cavalcanti Schnoor e Sebastião Deister


1844



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